Figura 1. A Desmaterialização do Nariz de Nero. Salvador DalÃ, 1947. Óleo sobre tela, 76,4 × 46 cm. Fundação Gala-Salvador DalÃ, Figueras. |
A obra de Salvador Dalà é enorme; calcula- se que mais de 700 telas
tenham sido assinadas por ele. Em várias delas é clara a identificação
de temas que tratam da ciência (fÃsica, matemática, biologia). Esta
constatação pode ser feita através da simples observação de alguns
tÃtulos de seus quadros com palavras que fazem referência direta Ã
ciência, como atômico(a) nuclear, partÃculas, desmaterialização,
desintegração, microfÃsica, mésons-pi, quarta dimensão e raios cósmicos.
Figura 2. EquilÃbrio Intra-Atômico de uma Pluma de Cisne. Salvador DalÃ, 1947. Óleo sobre tela, 77,5 × 96,5 cm. Fundação Gala-Salvador DalÃ, Figueras. |
A Desmaterialização do Nariz de Nero (Fig. 1) e EquilÃbrio Intra-Atômico de uma Pluma de Cisne (Fig. 2), ambos de 1947, retratam bem o inÃcio do perÃodo denominado Misticismo Nuclear de DalÃ, marcado pelo crescente interesse pela ciência, em especial a fÃsica atômica. Ele próprio afirmou que naquela época o átomo passou a ser o seu tema preferido de reflexão [4].
Em A Desmaterialização do Nariz de Nero, a imagem de uma grande romã é mostrada na parte central. A romã encontra- se dividida ao meio e suas sementes aparecem flutuando no ar entre as duas metades. Na visão de DalÃ, a romã representa o universo atômico, ou seja, o próprio átomo [4]. As sementes são vistas nessa representação como elétrons em constante movimento dentro do átomo. A figura da romã aparece novamente em outros trabalhos de DalÃ, como em Sonho Causado Pelo Vôo de uma Abelha em Torno de uma Romã um Minuto Antes de Despertar (1941), A Madona de Port Lligat, (primeira versão, 1949) e em uma pintura sem tÃtulo de 1948, onde Dalà retrata a mesma romã envolta em concreto, mas desta vez a romã aparece inteira e não dividida. A estrutura de concreto que envolve a romã representando o domÃnio do átomo pela humanidade, fato demonstrado pela construção e utilização da bomba nuclear. Sobre esta estrutura, um busto de Nero encontra-se dividido em quatro partes e sobre ele um arco, todos suspensos no ar, representando as forças atômicas que mantêm o equilÃbrio entre seus constituintes e a desintegração da realidade fÃsica em vários componentes. Sobre a realidade da matéria, Dalà se exprime da seguinte forma: “Sob essa aparência giram galáxias microscópicas de elétrons, agitados por uma onda impalpável, ela mesma fluido de uma energia quase imaterial” [4].
As forças que agem para manter a estabilidade atômica são temas no quadro EquilÃbrio Intra-Atômico de uma Pluma de Cisne (Fig. 2). O próprio tÃtulo apresenta essa idéia. Na imagem os diversos elementos encontram-se flutuando em equilÃbrio, fazendo uma referência à s partÃculas e forças intra-atômicas que se encontram em equilÃbrio na composição do átomo. Ao fundo vê-se uma parede de pedra onde se encontra a pluma e a inscrição, que dão nome ao quadro. Em diversos quadros do perÃodo atômico Dalà representa a realidade fragmentada, ora na forma de estruturas regulares e ordenadas, como esferas e cubos, ora por estruturas irregulares e desordenadas.
Figura 3. Galátea de Esferas. Salvador DalÃ, 1952. Óleo sobre tela, 65 × 54 cm. Fundação Gala-Salvador DalÃ, Figueras. |
Em Galátea de Esferas (Fig. 3), a imagem de sua esposa, Gala, é
composta pela união de várias esferas. Estas esferas aparecem suspensas
no ar e em equilÃbrio, dispostas lado a lado, como átomos em um sólido,
formando uma rede cristalina. Dalà afirma que esta pintura sintetiza
toda a sua nova ciência mÃstica da pintura e sua técnica do realismo
quantificado, “em que cada elemento do quadro existe por si mesmo, mas
concorre para criar um conjunto cosmogônico que o transcende” [4]. Esta
forma de representar a realidade pode ser vista ainda na pintura Cruz Nuclear (Fig. 4).
Figura 4. Cruz Nuclear. Salvador DalÃ, 1952. Óleo sobre tela, 78 × 58 cm. Coleção privada. |
A Desintegração da Persistência da Memória (Fig. 6) é a reformulação de uma obra realizada 20 anos antes, A Persistência da Memória (Fig. 5).
Figura 6. A Desintegração da Persistência da Memória. Salvador DalÃ, 1952-1954. Óleo sobre tela, 25 × 33 cm. Museu Dalà de São Petersburgo, Flórida, Fundação Reynold Morse. |
A Persistência da Memória talvez seja o trabalho de Salvador Dalà mais relacionado à teoria da relatividade de Einstein. Na nova versão, ele “quantifica” sua obra anterior.
Figura 5. A Persistência da Memória. Salvador DalÃ, 1931. Óleo sobre tela, 24 × 33 cm. Museu de Arte Moderna, Nova Iorque. |
A planÃcie, as rochas, a árvore, que se viam sólidas e compactas, agora
aparecem fragmentadas, decompostas em várias partes. Esta fragmentação
segue a linha do Misticismo Nuclear anteriormente mencionado, onde a
realidade fÃsica apresenta-se composta por átomos. Ao se tomar
consciência desta realidade, passa-se a perceber outros aspectos antes
não visÃveis do mundo, aà representados pela visão da parte submersa de
uma pedra e do peixe, que se encontram dentro da água, da parte interior
da rocha e da terra, onde se vê agora um outro relógio mole. O outro
aspecto de representação da fase nuclear é a formação de imagens a
partir de partÃculas não-uniformes e desordenadas, aparentando um
movimento frenético.
Muitas telas evidenciam esta fase de sua pintura, e dentre elas podemos citar Oposição (Fig. 7), Cena Religiosa em PartÃculas (Fig. 8) e Santo Rodeado por Três Mésons-Pi (Fig. 9).
Figura 7. Oposição. Salvador DalÃ, 1952. Aquarela e tinta, 43,18 × 30,48 cm. |
Figura 8. Cena Religiosa em PartÃculas. Salvador DalÃ, 1958. Óleo sobre cartão, 26,7 × 18,2 cm. Coleção privada. |
Figura 9. Santo Rodeado por Três Mesons- Pi. Salvador DalÃ, 1956. Óleo sobre tela, 42 × 31 cm. Fundação Gala-Salvador DalÃ, Figueras. |
A natureza dual dos constituintes atômicos e o princÃpio da incerteza, apresentados pela fÃsica quântica, podem ser os responsáveis por esta tendência nas pinturas de DalÃ. Nas duas imagens, cada figura fragmentada é composta por partÃculas de dois tipos, de tons contrastantes e opostos. Apesar desta constatação, não se pode delimitar a separação da figura, ela não é composta apenas pela parte escura nem composta apenas pela parte mais clara, mas pela destas duas partes, ao mesmo tempo. A observação dos dois quadros anteriores e do Santo Rodeado por Três Mésons-Pi (Fig. 9), passa a impressão de indeterminação. As figuras são compostas por diversas partes menores de tal forma que ao se observar o quadro como um todo se perde os detalhes das figuras menores; ao se ver as formas e detalhes de cada partÃcula, se perdem a visão geral da figura representada. Segundo o próprio autor, “É com os mésons-pi e com os mais gelatinosos e indeterminados neutrinos que desejo pintar a beleza dos anjos e da realidade” [5]. Em Santo Rodeado por Três Mésons-Pi, a matéria que compõe o santo apresenta-se fragmentada em uma explosão e levitando, explosão esta provocada por três invisÃveis mésons-pi.
O único conceito concebÃvel de Deus, segundo DalÃ, é o
de uma partÃcula infinitamente elementar e carregada de energia [6].
Esse aspecto “indeterminÃstico” nas pinturas de Dalà pode ser observado
em grande parte de sua obra, onde ele utiliza ilusões de óptica para
compor seus trabalhos. Exemplo disso são Espanha (1938), Mercado de Escravos com o Busto de Voltaire (1940), Dom Quixote (1956-1957) e Gala Nua Olhando o Mar que a uma Distância de 20 Metros Se Converte no Retrato de Abraham Lincoln (1976).
Toda esta idéia de indeterminação nos quadros é apenas uma analogia,
pois nos quadros de Dali as figuras já estão lá, ao passo que o
princÃpio de indeterminação de Heisenberg trata de uma realidade que não
está dada a priori, mas que só se definirá a partir da medição.
Entretanto, é uma analogia frutÃfera, pois podemos ilustrar através da
obra de Dalà um princÃpio nada trivial da mecânica quântica [7].
Parte do artigo: Dalà e a mecânica quântica, de Rodrigo Ronelli D. da Costa, Robson S. dos Nascimento e Marcelo Gomes Germano, Revista A FÃsica na Escola, v. 8, n. 2, 2007, p.23.
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